A internet nasceu com a promessa de ser um espaço aberto, descentralizado e universal. A ideia original era conectar pessoas, organizações e informações de qualquer parte do planeta de forma livre, sem fronteiras ou intermediários controlando o fluxo de dados. No entanto, nas últimas décadas, esse ideal vem sendo desafiado. O termo “splinternet” (ou internet fragmentada) descreve o fenômeno em que a rede global passa a ser dividida em blocos distintos, moldados por interesses políticos, econômicos e regulatórios.
Em vez de uma internet única e coesa, surgem múltiplas “internets” paralelas, cada uma regida por regras próprias, com barreiras de acesso, censura de conteúdos e restrições de tráfego.
Esse processo não é apenas técnico: envolve disputas de poder entre big techs, governos e provedores de serviços de internet (ISPs). Cada ator busca definir os rumos da conectividade, seja para proteger sua soberania digital, seja para manter domínio sobre dados e infraestruturas críticas.
Mas afinal, o que está em jogo nessa fragmentação? Quais são os riscos e as implicações desse movimento para empresas, usuários e países inteiros?
Disputa de poder: big techs, governos e ISPs
O ecossistema da internet é sustentado por três grandes polos de poder que frequentemente entram em conflito:
1. Big Techs: o domínio sobre dados e serviços
Gigantes como Google, Meta, Amazon, Apple e Microsoft concentram não apenas grande parte do tráfego online, mas também o controle sobre plataformas essenciais de comunicação, armazenamento e nuvem. Ao centralizar dados de bilhões de usuários, essas empresas ditam tendências tecnológicas, influenciam a economia digital e desafiam até mesmo regulações nacionais.
Na prática, muitas vezes a experiência de “navegar na internet” significa estar dentro de um ecossistema privado — como o Android/Google, iOS/Apple ou Facebook/Meta. Essa concentração cria dependência, reduz diversidade e dificulta que governos e ISPs imponham sua própria governança.
2. Governos: soberania e controle da informação
De outro lado, governos buscam garantir sua soberania digital, controlando o que circula em seus territórios. Isso pode acontecer por razões legítimas, como segurança nacional e proteção de dados, mas também por interesses políticos, como censura de conteúdos críticos.
Exemplos marcantes incluem o Great Firewall da China, que limita o acesso a plataformas globais e cria uma internet “local”, e a recente lei de soberania digital da Rússia, que obriga ISPs a filtrar tráfego por infraestrutura estatal. Essas práticas reforçam a fragmentação, criando muros digitais entre países.
3. ISPs: a batalha pela neutralidade da rede
Os provedores de internet (ISPs) ocupam posição estratégica: são eles que conectam usuários à rede global. A discussão mais crítica envolvendo esse setor é a neutralidade da rede, o princípio de que todo tráfego deve ser tratado de forma igual, sem priorizar ou bloquear conteúdos.
No entanto, pressões comerciais e regulatórias abrem brechas para ISPs priorizarem tráfego de parceiros ou dificultarem o acesso a serviços concorrentes. Esse embate cria atrito tanto com big techs, que desejam alcance irrestrito, quanto com governos, que veem nos ISPs um ponto de controle eficiente.
Riscos e implicações da fragmentação
A fragmentação da internet traz riscos que vão muito além de questões técnicas: ela altera a forma como circulam informações, como funcionam as economias digitais e até como os cidadãos exercem seus direitos fundamentais. O “splinternet” é, em essência, um fenômeno político, econômico e tecnológico que pode redefinir o futuro da conectividade global.
1. Censura e restrição de direitos digitais
Um dos primeiros impactos perceptíveis é a censura. Quando governos ou blocos regionais controlam quais plataformas podem operar e quais conteúdos podem ser acessados, a internet deixa de ser um espaço aberto para se tornar uma rede filtrada. Essa dinâmica compromete a liberdade de expressão e cria bolhas de informação que refletem os interesses das autoridades locais. Mais do que impedir acesso a notícias independentes, a censura digital pode influenciar eleições, sufocar críticas e restringir movimentos sociais.
2. Concentração de tráfego e gargalos na infraestrutura
Outro efeito direto é a concentração de tráfego em infraestruturas específicas. Quando países exigem que dados de seus cidadãos sejam armazenados localmente ou bloqueiam serviços estrangeiros, o fluxo de informações se centraliza em poucos provedores ou plataformas nacionais. Isso pode parecer positivo sob o argumento de “soberania digital”, mas também aumenta a vulnerabilidade: um ataque ou falha em um desses pontos concentra consequências em escala muito maior. Para empresas globais, a fragmentação significa custos adicionais, já que precisam manter data centers redundantes e adequar suas operações às regras de cada território.
3. Barreiras ao comércio digital e à inovação tecnológica
No campo econômico, a fragmentação cria barreiras para o comércio digital e para a inovação tecnológica. Startups e empresas menores, que tradicionalmente se beneficiam da abertura da internet para expandir rapidamente em múltiplos mercados, passam a enfrentar dificuldades para escalar. A necessidade de adaptar soluções a legislações distintas, como:
- Normas de proteção de dados;
- Requisitos de hospedagem local;
- Sistemas de pagamento restritos;
- Entre outros.
Gerando custos que somente grandes players conseguem absorver. O resultado é um ambiente menos competitivo, no qual a inovação perde espaço e a concentração de poder tende a aumentar.
4. Perda de interoperabilidade e aumento da exclusão digital
Também há o risco da perda de interoperabilidade. Em uma internet fragmentada, serviços e protocolos deixam de conversar entre si. Isso significa que aplicativos, plataformas de comunicação ou sistemas de autenticação podem funcionar em um país, mas não em outro. A consequência é a ampliação da exclusão digital, principalmente em regiões em desenvolvimento, que dependem de soluções globais de baixo custo para inclusão. O que antes era um ambiente universal de acesso ao conhecimento se transforma em um mosaico desigual, onde o local de origem do usuário define o quanto ele pode se conectar.
5. Segurança e ciberameaças ampliadas
A segurança cibernética é outro ponto crítico. Com redes segmentadas por fronteiras políticas, a cooperação internacional em incidentes de cibersegurança torna-se mais difícil. O combate a ameaças como APT (Advanced Persistent Threats) depende de colaboração entre governos, ISPs e empresas privadas em escala global. Se cada país adota padrões e protocolos distintos, as lacunas de segurança aumentam, e grupos mal-intencionados passam a explorar brechas em regiões menos preparadas. Em um mundo fragmentado, a resiliência da internet contra ataques coordenados diminui drasticamente.
6. Desinformação e manipulação geopolítica
A fragmentação também fortalece a disseminação de desinformação. Com a ascensão das IAs generativas, que permitem criar conteúdos manipulados em grande escala, o risco de campanhas políticas ou geopolíticas explorarem ambientes digitais fechados é cada vez maior. Em ecossistemas isolados, a circulação de informações falsas pode ser menos contestada, já que faltam fontes externas de verificação. Isso intensifica polarizações e torna a manipulação de narrativas um instrumento poderoso em disputas de poder.
7. Impactos na soberania digital e no equilíbrio de poder
Por fim, há a questão da soberania digital. Embora seja legítimo que países queiram proteger dados de seus cidadãos e reduzir a dependência de grandes corporações estrangeiras, uma política excessivamente isolacionista pode ter efeito contrário: em vez de fortalecer sua posição, a nação corre o risco de perder acesso a tecnologias emergentes e se tornar menos competitiva no cenário global. A soberania, nesse contexto, precisa ser equilibrada: proteger o que é estratégico, mas sem cortar os laços que garantem inovação, colaboração e desenvolvimento econômico.
O cenário atual: Europa e Brasil em destaque
A fragmentação da internet não é um fenômeno futuro ou hipotético: ela já acontece e se manifesta de formas distintas em diferentes regiões do mundo. Enquanto alguns blocos buscam regular a atuação das big techs para reduzir dependência e proteger a privacidade de seus cidadãos, outros concentram esforços em defender sua soberania digital e criar alternativas locais de infraestrutura. Entre os exemplos mais relevantes estão a União Europeia e o Brasil, que, cada um à sua maneira, tentam equilibrar conectividade global com interesses nacionais.
União Europeia: regulação como resposta estratégica
Na União Europeia, a principal ferramenta para enfrentar a concentração de poder das big techs é a regulação. O bloco tem se posicionado como um laboratório global de políticas digitais, desenvolvendo legislações que inspiram ou pressionam outros países a adotarem padrões semelhantes. O GDPR (General Data Protection Regulation), em vigor desde 2018, é o caso mais emblemático: estabeleceu regras rígidas para coleta, armazenamento e uso de dados pessoais, colocando a privacidade do cidadão europeu no centro da governança digital.
Mais recentemente, medidas como o Digital Markets Act (DMA) e o Digital Services Act (DSA) foram criadas para limitar práticas monopolistas e garantir maior transparência no funcionamento das plataformas. O objetivo é evitar que poucas empresas concentrem o controle sobre fluxos de informação e inovações digitais. Em outras palavras, a Europa busca reduzir a dependência estrutural de serviços de empresas americanas, criando um ambiente digital mais competitivo e seguro.
Outro debate em evidência é o chamado “fair share”, uma proposta defendida por operadoras de telecomunicações que argumentam que as big techs deveriam contribuir financeiramente para custear parte da infraestrutura de rede. A justificativa é simples: empresas como Google, Meta, Netflix e Amazon são responsáveis por grande parte do tráfego de dados na internet, mas os custos de expansão da infraestrutura recaem quase exclusivamente sobre ISPs e operadoras. Essa pauta une, de forma momentânea, governos e provedores de internet contra as gigantes tecnológicas, gerando discussões intensas sobre sustentabilidade do ecossistema digital.
É importante destacar que a abordagem europeia tem impactos globais. Como as empresas de tecnologia precisam se adaptar às regras locais, frequentemente ajustam seus serviços para todos os mercados, estabelecendo padrões internacionais de privacidade e regulação. Isso reforça a Europa como um polo de influência normativa no cenário da fragmentação da internet.
Brasil: neutralidade da rede e soberania em debate
No Brasil, a fragmentação da internet assume contornos diferentes, mas igualmente relevantes. O país foi pioneiro ao aprovar, em 2014, o Marco Civil da Internet, considerado uma das legislações mais avançadas do mundo em termos de princípios digitais. O texto estabeleceu a neutralidade da rede como base da conectividade: todo tráfego deve ser tratado de forma igual, sem discriminação ou priorização de conteúdos. Esse princípio foi fundamental para garantir um ambiente digital mais democrático, no qual startups, plataformas independentes e grandes players competem em condições mais equilibradas.
Contudo, nos últimos anos, o tema voltou ao centro das discussões. Pressões de diferentes setores, incluindo ISPs que buscam flexibilizações e grupos políticos interessados em maior controle sobre o tráfego, reacenderam o debate sobre possíveis alterações na neutralidade. Isso levanta preocupações sobre riscos de censura indireta, priorização de conteúdos pagos ou até bloqueios seletivos de serviços.
Paralelamente, cresce a pauta da soberania digital brasileira. Em um mundo onde dados se tornaram ativos estratégicos, o país discute formas de proteger informações críticas e estimular soluções nacionais em nuvem, data centers e cibersegurança. Já existem iniciativas que buscam criar alternativas locais para reduzir a dependência de infraestruturas estrangeiras, sobretudo em setores sensíveis como telecomunicações, energia e serviços financeiros.
Esse movimento não significa isolamento digital, mas uma tentativa de equilibrar integração internacional com proteção de interesses estratégicos. O Brasil acompanha de perto os debates globais sobre regulação de big techs, privacidade de dados e modelos de governança, adaptando-os à sua realidade econômica e social. Ao mesmo tempo, a posição brasileira é desafiadora: precisa garantir inclusão digital para milhões de cidadãos, manter competitividade no cenário global e proteger sua infraestrutura crítica diante do aumento de ataques cibernéticos.
Conteúdos complementares: cibersegurança, APTs e IA generativa
A fragmentação da internet não ocorre isoladamente: ela se conecta a desafios crescentes de cibersegurança e à evolução das IAs generativas.
APTs e novas superfícies de ataque
Com a fragmentação, aumenta a complexidade dos ecossistemas digitais. Cada país ou região cria regras próprias, com diferentes padrões de segurança e monitoramento. Isso amplia a superfície de ataque para APT (Advanced Persistent Threats) — campanhas de ciberespionagem avançadas, geralmente patrocinadas por Estados-nação.
As APTs exploram vulnerabilidades em infraestruturas críticas, como ISPs e data centers, aproveitando brechas regulatórias ou tecnológicas. Em um cenário fragmentado, a cooperação internacional para detecção e resposta a esses ataques se torna mais difícil.
Inteligência Artificial generativa e manipulação de informação
A chegada da IA generativa adiciona outra camada ao problema. Essas ferramentas podem ser usadas para criar desinformação em larga escala, manipular narrativas políticas e até automatizar ataques cibernéticos.
Se cada região tiver sua própria versão de internet, a circulação de informações manipuladas pode ser ainda mais difícil de monitorar e combater, aumentando os riscos de polarização e conflitos geopolíticos.
Conclusão: o futuro da internet e o equilíbrio necessário
A ideia de uma internet aberta e universal está cada vez mais sob pressão. O splinternet reflete uma disputa de poder entre big techs que concentram serviços e dados, governos que buscam proteger sua soberania e ISPs que controlam a espinha dorsal da conectividade.
A fragmentação traz riscos significativos: censura, concentração de tráfego, vulnerabilidade a ataques e desafios para a inovação. Ao mesmo tempo, a busca por soberania digital e regulação justa é legítima, desde que não comprometa a essência colaborativa e interconectada da rede.
O futuro da internet dependerá de encontrar um equilíbrio entre liberdade, segurança e governança compartilhada. Para empresas e usuários, compreender esse cenário é vital para antecipar riscos, proteger ativos digitais e se preparar para uma realidade em que a conectividade global pode não ser tão universal quanto antes.
Em última análise, a questão não é apenas tecnológica, mas política e estratégica: quem controla a internet, controla o fluxo de informação e, em grande medida, o futuro da sociedade digital.
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